Na várzea
- Não lembro... – Paulo fez uma cara de quem não fazia a menor idéia de que história Ademar falava.
- É, tava doendo muito... fazer o quê? – o homem disse – Eu falei pro pessoal que tava doendo, aí eles jogaram a “água benta”, passaram a faixa e disseram pra mim: vai lá, vai lá! Joga que passa... Naquele tempo não tinha essas frescuras que tem hoje não, jogador tinha que jogar.
- E num era? Eu falo isso, num falo Paulo? – perguntou Ademar.
- Fala sim. – concordou Paulo.
- Seu Jorge... esse homem, com a perna enfaixada!!! Enfaixada!!! – dessa vez o tapa foi em Jorge – Sabe o que é isso? Jogar com a perna enfaixada... O senhor já tentou correr com a perna enfaixada? Hum... deixa eu te contar... moço, ele pegou a bola na meia cancha...
- Foi... – concordou o homem.
- A perna enfaixada!!! Presta atenção nisso!!! Dava pra ver a faixa na coxa direita dele. – e Ademar apontou para a coxa do homem.
- Não, – o homem fez uma cara de contrariado – era na esquerda.
- Era? Não era na direita? – Ademar ficou um tempinho pensando – Ah tá... agora lembro bem... lembro bem... era a esquerda mesmo... Seu Jorge... Escuta só... Oh Paulo, presta atenção... No que ele recebeu a bola já deixou o primeiro pra trás, é... porque jogador bom não perde tempo... já recebeu dando um toque pra frente e tchau zagueiro...
- É... o coitado ficou com uma cara de “Deus me livre”. – o homem completou.
- Só nisso a defesa já foi pro brejo... – Ademar, empolgado, ia se mexendo todo esquisito para tentar mostrar como foi o lance – era ele abrindo pra direita e a defesa correndo que nem doida de frente pro gol... E o técnico então? Seu Jorge, o senhor já viu técnico quando percebe que o time vai tomar gol? É um desespero só: “corre fulano, pega sicrano, olha o meia livre... marca ele... volta, ajuda!!!” Isso pra num falar os palavrões porque tem criança perto. Mas moço... quando esse homem chegou na frente da área ele viu o goleiro saindo desesperado,,, Sabe o que ele fez? Moço, o senhor imagina o que ele fez?
- Deu um totozinho por cobertura? – respondeu Jorge e se afastou para evitar o tapa.
- Não... – Ademar agitou o dedo negativamente – não fez isso não... mas eu vejo que o senhor joga futebol... num joga?
- Eu tento – disse Jorge.
- Porque se num jogasse num ia saber dizer isso que o senhor disse agora... E o senhor só num tá certo porque a gente tá falando dele... – Ademar apontou para o homem – Eu também, que eu já joguei minha bolinha, não como ele, mas joguei... eu também ia dar um toque por cima do goleiro...
- É... todo mundo fala isso. – disse o homem.
- Mas esse homem aqui, Seu Jorge... ele num fez isso não... não... isso era fácil... ele partiu pra cima do goleiro... – e lá foi outro tapa de Ademar no peito do homem.
- Eu gosto do drible, tinha que driblar... perco o gol... mas vou pro drible... – o homem pareceu mais confortável com a situação.
- Perdia nada... – retrucou Ademar.
- Perdi alguns... – disse o homem.
- Uns 2 ou 3... que eu vi, 2 ou 3 no máximo! – disse Ademar.- Foi mais... – o homem insistiu.
- Mas esse você não perdeu... – arrematou Ademar.
- Esse não. – confirmou o homem.
- O goleiro até hoje não sabe por onde você passou. Deve tá te procurando ainda... – Ademar soltou outra gargalhada.
- Dei sorte... foi pena que a gente perdeu aquele jogo. – o homem disse e fez cara de choro.
- Não perdeu, não... foi 2X1 pro Quinze! – disse Ademar.
- Foi... pro Quinze de Pirápolis. – disse o homem.
- Então... – Ademar fez cara de quem não estava entendendo.
- Eu era do Quinze de Bananais. – disse o homem.
- O quê? De Bananais? Você é o... o... – Ademar parecia não acreditar.- O Doda, meia do Quinze de Bananais, vice-campeão da várzea paulista em 62, 63, 64 e 65. – o homem disse sorrindo.
- Não acredito... O Doda? – Ademar ficou de boca aberta olhando para Doda.
- É... sou eu. – sorriu Doda.
- Mas eu não acredito... o Doda? – Ademar estava paralisado.
- Sou, sou eu mesmo. – disse Doda e devolveu um tapa no peito de Ademar que, surpreso pela revelação e pelo tapa, virou as costas para Doda e falou:
- Paulo, lembra de uma história que eu te contei de um meia, que jogou os campeonatos de 62, 63, 64 e 65?
- Mais ou menos... – Paulo respondeu meio indeciso.
- Então... – agora Paulo foi a vítima do tapa de Ademar – era esse o nome do cara... Doda!
- Eu mesmo!!! – Doda interrompeu sorrindo para os dois.
- Cara, – Ademar olhou feio para Doda – mas você era ruim demais... dos piores meias que eu vi jogar. – e com o dedo em riste virou-se para Jorge – Moço, esse seu vizinho afundou o time de Bananais por 4 anos! Vamos embora Paulo.Paulo olhou para Doda com desprezo.
- Vamos... seu pereba!!!
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