Foto de Evandro Teixeira
Talvez por ser demasiadamente popular, o futebol consegue concentrar alguns mitos e preconceitos. Muita gente, principalmente os viajantes da teoria da conspiração, por exemplo, classificam o esporte como um meio de alienação de massa. Outros, no entanto, gênios da objetividade, conseguem ver apenas 22 pessoas correndo atrás da bola. Respeito todas as opiniões, mas acho que o futebol é muito maior que todas as teses e hipóteses. Acho inclusive, que não é possível explicar o futebol, apenas vive-lo.
Abaixo um texto genial, onde o futebol e a vida de uma família argentina se misturam. Ele foi escrito em 2004, por Mirta Bertotti, uma dona de casa de 52 anos, cheia de vida, simpática e carismática, que divide seu tempo entre a cozinha e o computador, onde atualiza o seu “weblog de uma mujer gorda”. Na ocasião, Maradona estava entre a vida e a morte no hospital, reflexo do uso excessivo de drogas.
Viver para contar
Ao Zacarias, o vi chorar três na vida. Quando lhe disseram que Nacho era menino, quando você meteu o segundo nos ingleses e quando te expulsaram da Copa de 94. Assim que, dê-se conta: graças a você descobri que o meu marido tinha sangue nas veias. Por isso, se ele reza, eu rezo. E não me importa se outra vez há de rezar por você. Nesta casa, quando meu marido diz que há que acender duas velas, acendem-se duas velas.
Você não é o santo de minha devoção, já te disse mil vezes; e sempre te achei uma boa bosta porque você é um fanfarrão, um boca suja. O Zacarias me diz que se eu gostasse de futebol seria outra coisa, que você em campo era algo inominável, de outro mundo, eras capaz de enlouquecer as leis da física e bla bla blá. Mas, por esse lado, ninguém me convence. Sou uma senhora, não entendo e nem quero entender de pelotas. Por outro lado, há outras coisas que, sim, entendo. E por essas coisas rezo as noites. Mas atenção: não é por você. Sabe por que rezo? Porque houve momentos em que não tivemos nada sobre a mesa – e você dava alegria a minha família.
Alfonsín estava fazendo estragos e, graças a Deus, justamente nos caiu do céu uma Copa do Mundo, que ganhaste de ponta a ponta. Para mim foi um inverno horrível, porque somente podia servir caldinho de acelga no almoço e no jantar. Mas se hoje pergunto ao Nacho ou Zacarias do que se recordam daquele inverno, eles falam no seu nome, enchem a boca para falar de você, sorriem... Não se recordam de outra coisa, não tem a menor idéia de que passaram fome.
Do lado de fora, na porta da clinica onde respirar por um tubinho, está cheio de jornalistas estrangeiros tirando fotos de um mundo de gente que acende velas e passa a madrugada recitando o rosário. Às vezes me dá um pouco de vergonha que o resto do mundo creia que somos tão simplórios, tão cabeludos. Mas depois me dá vontade de explicar ao mundo que ninguém reza pelo boca-suja, nem mesmo pelo fanfarrão. Tenho vontade de explicar ao mundo que, das poucas alegrias que tivemos nos últimos anos, quase todas vieram com a sua assinatura.
Como nos custa entrar em acordo em alguma coisa, rirmos ou chorarmos pelas mesmas coisas. Como nos custar cantar “Argentina, Argentina” e, ao mesmo tempo, sentir que nosso peito se estufa. E fazer força pelo mesmo, e querer ser os melhores, e se estrebuchar de raiva.
No dia efedrina sai para a rua e, te juro pelos meus três filhos, pela primeira vez na vida vi todo mundo chorando. As pessoas andavam em silêncio e com o muco escorrendo do nariz. Todo um país murcho e mudo. Que esquisitos somos! – pensei. Mas me senti orgulhosa desse sangue que era meu, porque também chorava e não sabia desde quando.
Se até o Caio, que nunca te viu erguer uma Copa do Mundo, tem um pôster seu no quarto dele – e fala de você como se te houvesse vivido. Se até o Nonno te perdoou por ter mandado à puta que o pariu toda a Itália, ao vivo e a cores. Se, inclusive, o Nacho, que odeia futebol, sabe que você é mais que isso, e te defende... Como não vou rezar para que você se restabeleça?
Dentro de muitos anos, os filhos dos filhos da Sofia viverão em um País muito melhor do que o que temos agora. E ninguém se recordará de que era um fanfarrão e um boca-suja. Os livros escolares dirão de você somente o importante: que aqui uma vez nasceu um mestiço que jogava bola como ninguém, e que era capaz de reerguer um povo triste e deixa-lo louco de alegria, de fazê-lo feliz – inclusive nas épocas mais negras. Para que não morra esse sujeito, rezo.